Os dedos dos pés pintados com um
esmalte que trazia a sensação de ser criança e usar o esmalte
escuro da mãe. Paul McCartney nos fones, mas ela juraria que seu
Beatle favorito era Ringo. A chuva batendo na janela, enquanto o ar
condicionado refrigerava o interior da casa. As pernas nuas devido ao
calor, e uma vontade infindável de ser mais do que era. Os pés
cansados e grandes que insistiam em rodopiar dançando. As mãos
cheias de calos de dedos longos e unhas mal cortadas. Os olhos
castanhos cobertos por óculos de grau, que permitiam que ela visse
de longe. Um sorriso tímido e torto, sendo corrigido por um aparelho
ortodôntico. Os cabelos, longos e recém lavados, caindo por suas
costas da maneira que queriam. E lá, por baixo de tudo isso, um
coração solitário.
Um coração que fora quebrado
inúmeras vezes. Por aquele de mãos calosas, que não acreditara
nela. Por aquele de sorriso torto, que não a vira como mais do que
amiga. Por aqueles que ela achou que gostava, mas se enganou. E
então, por último, por aquele que tocara seu coração como cordas
bem afinadas.
Um coração que sofrera todas as
vezes que a vida decidira fazê-la sofrer. Um coração que respirava
abatido, que mal se segurava, mal sobrevivia. Um coração que se
apaixonava uma ou duas vezes na semana, por homens que sabia que não
teria. Um coração que acelerava quando algo que amava era
mencionado. Que amava amar, simples e puramente.
Levou seu coração ao médico. Se
sentou e contou que doía, doía muito, e que não tinha com quem
dividi-lo. Sentia que ele era, cada vez mais, um fardo. Que muitas
vezes se sentia fisicamente mal por conta de algo que estava dentro
de si.
O médico a olhou nos olhos e alertou:
- Temos duas opções. Realizamos uma
cirurgia e retiramos seu coração, substituindo-o por um objeto
inanimado de sua preferência, como uma lata de guaraná ou uma
xícara de café, ou deixamos seu coração como está. Nesse caso,
te indico um remédio, que não cura todos danos, não os
permanentes, mas cura quase todos.
- E qual seria? - Uma voz calma,
quieta, tímida, medrosa.
- O Tempo. Uso contínuo.
- E os efeitos colaterais?
- Experiência.
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