sábado, 31 de maio de 2014

Expectativa de vida de seis meses e um dia

Alguns filmes esse ano parecem estar disputando qual vai me fazer chorar mais. Os campeões até agora são "Dallas Buyers Club" (Clube de Compras Dallas) e "The Normal Heart" (que manteve seu título em inglês).

Então, depois de muito pensar sobre o que - e como - escreveria aqui, e em homenagem à estreia de The Normal Heart na HBO Brasil, decidi fazer uma postagem sobre os dois filmes.

Além das frases marcantes e da profundidade dos filmes, eles são extremamente fortes, e deixam seu coração na boca e seus pensamentos a mil.

Preparem os lenços e os corações.



Dallas Buyers Club foi lançado primeiro, e acho que praticamente todo mundo sabe que esse filme existe. Além de um elenco super estrelado, ele garantiu Globos de Ouro, Oscars (sim, no plural) e muitos outros prêmios.

O filme é baseado em um história real, e conta a história de Ron Woodroof (o Matthew McConaughey, que está irreconhecível no papel), um peão de rodeio que descobre estar com AIDS.

A questão principal do filme é a luta de Ron com dois problemas: as drogas contra o HIV ainda não tinham sido aprovadas nos EUA, e ele acabava tendo que ir buscá-las em outros países, ilegalmente. O outro problema é a aceitação. Na época, a AIDS havia acabado de ser descoberta, e havia um grande preconceito com relação à doença, porque era "doença de gay", e essa era a maior ofensa de todas.

O Texas, que até hoje é um estado conhecido por sua homofobia, na época era muito pior. Ao longo do filme, Ron vai perdendo amigos, emprego, e sua vida vai desmoronando à medida que a doença avança (ele tem expectativa de vida de mais seis meses, apenas).

Mas não é só o Ron que faz o filme não. Ao seu lado, ele tem a linda Rayon (vivida pelo Jared Leto, que está simplesmente magnífico no papel), uma transsexual que também tem AIDS e, assim como ele, quer ajudar a todos que não têm como conseguir remédios. Além disso, ele conta com a ajuda de uma médica, a doutora Eve Saks (Jennifer Garner).

O título do filme vem da ideia que surge da necessidade de remédios: montar um "clube de compras" dos remédios contra o HIV. Era uma prática frequente nos EUA, na época. Depois de comprar ilegalmente os remédios, os fundadores de um clube de compras cobravam um valor mensal para quem precisava, de fato, ter acesso a esses remédios.



Depois de ver o filme (chorando feito louca, como é habitual), o que ficou para mim não foi apenas a raiva e muito menos a indignação com o que o governo fazia para não permitir a liberação das drogas, mas sim o crescimento do Ron. Ao longo do filme, Woodroof, que era homofóbico, transfóbico e racista, começa a mudar seus pré-conceitos com relação a quase tudo. É claro que Rayon influencia monumentalmente nessa mudança dele e, se no começo do filme Ron cospe xingamentos para Rayon, no final os dois são amigos.







The Normal Heart, que vai estrear hoje pela HBO Brasil, é baseado em uma peça da Broadway. Não, não é um musical. A peça homônima estreou nos palcos em 1985, off-Broadway, e depois foi para os palcos principais, ganhando um revival em 2011.

Estreou nos EUA no dia 25 de maio e já recebeu diversas indicações ao Critic's Choice.

A peça/filme é semi-auto-biográfica, e foi escrita por Larry Kramer. Em termos de ordem cronológica da história, esse filme vem antes de Dallas Buyers. TNH se passa entre 1981 e 1984, enquanto DBC se passa logo depois, em 1985.

O filme conta a história de Ned Weeks (Mark Ruffalo, simplesmente PERFEITO) e seu grupo de amigos e sua luta contra a AIDS e a negligência do governo americano.

A segunda parte do título dessa postagem (e um dia) veio de um dos personagens desse filme.

Se em Dallas Buyers o foco é a luta por remédios, em The Normal Heart o foco é a luta por reconhecimento. Na época, tratavam a AIDS como um "câncer gay", não havia nenhum relato de casos da doença em heterossexuais ou lésbicas, e ninguém sabia exatamente o que causava ou como tratar.

Em Nova York, o grupo de Ned (a maior parte com AIDS ou com namorados com AIDS) se une a uma médica (Emma Brookner, interpretada por Julia Roberts) que atendia uma quantidade enorme de casos da doença e, juntos, se esforçam para obter qualquer tipo de ajuda.

O elenco de TNH também é absurdamente estrelado. Além de Mark Ruffalo e Julia Roberts, Jim Parsons (sim, o Sheldon que, aliás, me surpreendeu extremamente com a sua atuação), Taylor Kitsch, Matt Bomer (a melhor atuação do filme, se me perguntarem), BD Wong (o Dr Huang de Law & Order: SVU ) e Jonathan Groff são alguns dos nomes que integram esse elenco sensacional.

Na minha opinião, esse filme irrita mais. A raiva que ele deixou em mim foi muito, muito maior do que Dallas Buyers Club. Já aviso que o número de mortes durante o filme é incontável, e são momentos muito tristes.

"Você chora, e chora, até achar que não vai chorar mais, e então chora um pouco mais"




A trilha sonora do filme também é maravilhosa, recheada de músicas boas e clássicas e muito bem escolhidas.

Não tem muito o que dizer sobre o filme sem dar spoilers, então vou deixar uma curiosidade para ser lida depois de ver o filme (é sério, spoilers!); no revival de 2011, o autor Larry Kramer ficava do lado de fora do teatro entregando uma folhinha com a seguinte mensagem:

POR FAVOR SAIBA

"Obrigado por ter vindo ver nossa peça.

Por favor, saiba que tudo em The Normal Heart aconteceu. Essas eram e são pessoas reais que viveram e falaram e morreram, e são apresentadas aqui da melhor forma que pude. Muitas mais morreram desde então, incluindo Bruce, cujo nome era Paul Popham, e Tommy, cujo nome era Rodger McFarlane e quem se tornou meu melhor amigo, e Emma, cujo nome era Dr. Linda Laubenstein. Ela morreu depois de um retorno da polio e outra visita a um pulmão de ferro. Rodger, depois de construir três agências gays/de AIDS do zero, cometeu suicídio em desespero. Em seu leito de morte no Memorial, Paul me chamou (nós não nos falávamos desde nossa última briga nessa peça) e me disse para nunca parar de lutar.

Quatro membros do elenco original também morreram, incluindo meu grande amigo Brad Davis, o Ned original, quem eu conhecia desde praticamente o momento que ele saiu do ônibus da Flórida, um garoto tímido tão determinado a se tornar um bom ator, o que ele se tornou.

Por favor, saiba que a AIDS é uma praga mundial.

Por favor, saiba que não há cura.

Por favor, saiba que depois de todo esse tempo a quantia de dinheiro sendo gasta para procurar uma cura ainda é minúscula, ainda quase invisível, ainda impossível de localizar em qualquer verba nacional, e ainda completamente não-coordenada.

Por favor, saiba que aqui na América os números de caso continuam a subir em todas as categorias. Em boa parte do resto do mundo - Rússia, Índia, Sudeste da Ásia, África - os números de infectados e mortos são tão grotescamente altos que são raramente reconhecidos.

Por favor, saiba que todos os esforços para prevenir e educar continuam no registro infinito de falha.

Por favor, saiba que não há ninguém no comando dessa praga. Essa é uma guerra para a qual não existe um general, e nunca existiu um general. Como você pode ganhar uma guerra sem ninguém no comando?

Por favor, saiba que começando por Ronald Reagan (que não diria a palavra "AIDS" publicamente por sete anos), todos os presidentes não disseram nada e não fizeram nada ou, no caso do presidente atual, diz as coisas certas e então não as faz.

Por favor, saiba que a maior parte dos medicamentos para HIV/AIDS são desumanamente caros e o financiamento do governo para que os pobres os obtenham está diminuido e normalmente indisponível.

Por favor, saiba que as companhias farmacêuticas estão entre os pesadelos mais maléficos e gananciosos já soltos na espécie humana. Qualquer 'pesquisa" na qual embarcam é calculada apenas para encontrar novas drogas para nos manter, só um pouco, vivos, mas não nos fazer melhorar ou, deus os livre, curar-nos.

Por favor, saiba que uma quantidade enorme de pessoas morreu desnecessariamente e vai continuar a morrer desnecessariamente por causa de qualquer ou todo ponto exposto anteriormente.

Por favor, saiba que o mundo sofreu pelo menos alguns 75 milhões de infecções e 35 milhões de mortes. Quando a ação da peça que você acabou de ver começa, eram apenas 41.

Eu nunca vi tantas coisas erradas como essa praga, em todos os seus disfarces, representa, e continua a falar sobre todos nós."

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